Imagina o encontro de pessoas bonitas, bem resolvidas e, acima de tudo, comprometidas – mais que isso, apaixonadas - com o meio ambiente, capazes de fazer surgir num cantinho que seja o paraíso terrestre – no caso, marinho.
Sonho, utopia ou realidade? NEO MONDO foi conferir qual dessas alternativas é a que melhor traduz o que tem feito o Instituto Laje Viva, em seus 10 anos de existência. Nos dias 8, 9 e 10 de março, por exemplo, a ONG participou do Padi Dive Festival, na capital paulista, consagrado como “o mais importante evento de mergulho da América Latina”.
Ana Paula Balboni, cofundadora e diretora-presidente do Instituto e coordenadora do Projeto Mantas do Brasil, ressalta “a acolhida e incentivo que recebemos da organização do evento - importantíssimos para que possamos mostrar os resultados dos trabalhos que efetuamos no PEMLS (Parque Estadual Marinho da Laje de Santos – N.R.) . É um importante canal de comunicação do Instituto Laje Viva com o público do mergulho. É também uma maneira de levar às pessoas conhecimentos acerca das arraias gigantes, animais que têm imenso carisma e apelo e que são verdadeiramente adorados por todos os mergulhadores”.
Em sua 12ª. edição, neste ano, o Padi Dive Festival agregou reconhecimento ao Laje Viva. “O pessoal da loja montada ao lado do nosso estande na feira veio nos dizer: ‘ano que vem vamos pedir para nos colocarem próximos a vocês de novo, vocês são um verdadeiro chamariz...’. Foi uma participação muito divertida e positiva. O evento ficaria muito comercial sem a presença e o apelo das ONGs de preservação ambiental que estavam lá presentes, como o Meros do Brasil, o Sea Shepherd, entre outras iniciativas. A presença das ONGs enriquece o evento, acrescentando essa pegada ambiental que é, cada vez mais, preocupação do mergulhador”, avalia Ana Paula.
Nessa entrevista concedida por e-mail a NEO MONDO, o Padi Dive Festival foi apenas o ponto de partida. O fio condutor de nossa conversa com a advogada, formada pela USP e pós-graduada em Direito Tributário - apaixonada pela vida marinha desde criança (Ana Paula descobriu o mergulho em 1998 e hoje é rescue diver, com mais de 600 mergulhos logados, a maioria deles em pesquisa) -, está em mostrar a nossos leitores a real ‘importância das coisas’ quando se trata de cuidar do planeta.
NEO MONDO: O Instituto Laje Viva existe há 10 anos, e o Parque Estadual Marinho há 20 anos. Sem querer fazer qualquer ilação cabalística (momentos importantes a cada 10 anos), o que compete a cada uma dessas instituições fazer pelo meio ambiente? Os princípios e objetivos traçados vêm sendo cumpridos de modo satisfatório ou até mesmo têm superado as expectativas?
Ana Paula: É importante ressaltar que até mesmo a proteção da área na qualidade de Parque Marinho foi uma resposta dada pelo Poder Público ao clamor de mergulhadores, cientistas e frequentadores da área. É a sociedade civil que exerce esse papel, o de apontar a importância das coisas para que o Poder Público exerça sua função. O Poder Público não reúne (e não acredito que isso mude num futuro próximo) condições de investigar a importância das coisas, a escala de valores da sociedade. Mas a sociedade tem condição, tem direito e tem dever de mostrar ao Poder Público: ‘isto é importante pra nós, precisa ser protegido de nós mesmos’.
Foi isso o que ocorreu na criação do Parque Estadual Marinho da Laje de Santos há 20 anos. A sociedade, baseada na opinião técnica de biólogos marinhos, apontou ao Poder Público a importância do local e a necessidade de proteger a área de nossa própria ação predatória.
NEO MONDO: Foi daí que nasceu o Laje Viva, algo como um segundo passo?
Ana Paula: Isso. Dez anos mais tarde, a sociedade civil, aqui representada por um segmento entre os mergulhadores, se organizou para trabalhar em conjunto com o Poder Público em prol da preservação do seu santuário. A Laje de Santos é nosso patrimônio e continua sendo alvo da ação illegal de pescadores. As ações do Poder Público são muito mais eficazes quando apoiadas e tomadas em parceria com a própria sociedade. É esse o papel do Instituto Laje Viva. Estudar a importância do local e municiar o Poder Público e a própria sociedade de informações científicas.
NEO MONDO: E como isso se dá na prática: mediante parcerias?
Ana Paula: Trabalhando de modo integralmente baseado em mão de obra voluntária é sempre difícil atingir as nossas próprias expectativas, assim como a dos outros em relação ao que é esperado que façamos. Mas o Instituto Laje Viva trabalha, até hoje, baseado em mão de obra voluntária. Infelizmente não são muitas as empresas brasileiras que patrocinam projetos e iniciativas como a nossa. O Projeto Mantas do Brasil está em fase de renovação junto à Petrobrás por meio da Petrobrás Ambiental, e com isso teremos meios de compor uma equipe profissional, realmente dedicada ao sucesso e ampliação do Projeto. Nesse momento eu acredito que venhamos a satisfazer e até mesmo a superar as expectativas em torno dos trabalhos com as mantas gigantes.
NEO MONDO: Qual a aceitação que cada uma dessas duas instituições tão qualificadas e objetivas tem recebido das demais ONGs ambientalistas?
Ana Paula: Aqui no Brasil esse tipo de organização de pessoas em prol de um interesse comum ainda é um modelo muito novo, as pessoas demoram até mesmo a compreender. Há 10 anos os Operadores de Mergulho da Laje de Santos nos viam como concorrentes.
Aos poucos, com a concretização e o resultado dos trabalhos, um a um foi virando nosso grande parceiro. Nós ajudamos a preservar o local que é fonte de sustento deles. Não existe concorrência, agora temos uma relação simbiótica. Eles são nossos parceiros na preservação, ajudam a preservar o que amamos e o que nos é mais caro, mantêm eterna vigilância para evitar a pesca ilegal. E nós estudamos o local, ajudamos a preservar e criamos ferramentas de comunicação capazes de mostrar as belezas do local à comunidade santista, paulista e brasileira, atraindo mais público de turismo de mergulho, que é o que os sustenta. O benefício de ambas as partes ficou claro com o passar do tempo.
NEO MONDO: E como ficam governos e sociedade em geral?
Ana Paula: Em relação ao governo, aqui representado pela Gestão da Unidade de Conservação em questão, a aceitação e os trabalhos em parceria não podiam ser melhores. O gestor da UC, José Edmilson de Araújo Mello Junior, demonstra compreender a nossa missão, assim como nós procuramos compreender a dele, e nos ajudamos e apoiamos em tudo o que é possível. Ele sabe que pode contar conosco e que somos movidos pela paixão que temos pela Laje de Santos.
NEO MONDO: O que é o Laje Viva, como e por que surgiu?
Ana Paula: É uma ONG criada por mergulhadores amantes da Laje de Santos, com o intuito de proteger a Laje de Santos, pois a Laje é nossa, é patrimônio de todos. Os membros do Instituto sentem que o local nos dá tanto, tanto prazer, tanta alegria, tanta beleza, que, de alguma forma, precisávamos retribuir tamanha generosidade.
Apesar de a Laje de Santos ser berçário, residência e abrigo de uma série de espécies ameaçadas de extinção, uma em especial é o foco de nossos esforços e estudos, no Projeto Mantas do Brasil, que estuda os hábitos migratórios e o comportamento da maior espécie de arraia do mundo, um dos maiores peixes dos nossos oceanos, a Manta birostris.
NEO MONDO: Qual o alcance desse projeto até o momento?
Ana Paula: Em 2010, com a efetiva colaboração do Instituto Laje Viva, essa espécie de gigante marinho foi recategorizada pela International Union for Conservation of Nature (IUCN) como “VULNERÁVEL À EXTINÇÃO”, ou seja, subiu um degrau na escala de ameaça rumo ao risco de extinção.
É uma espécie de reprodução muito lenta. Cada fêmea consegue parir um único filhote a cada 3 anos, e estima-se que possuam algo como 14 anos de vida fértil, o que não garante muito mais do que 5 ou 6 bebês por fêmea ao longo da vida. Com uma reprodução tão lenta, a espécie simplesmente não suporta qualquer pressão de pesca. E é uma das espécies que compõe a chamada megafauna carismática, são verdadeiros atratores de turismo de mergulho no mundo todo. A população brasileira desses gigantes gentis, inteligentes e brincalhonas talvez seja a menor do mundo, e talvez mais próxima da extinção do que nós mesmos possamos imaginar.
Então uma das principais bandeiras do Instituto Laje Viva é trabalhar pela sobrevivência dessa espécie tão fantástica.
NEO MONDO: Quais as suas principais metas e realizações?
Ana Paula: Nossas principais metas são e serão sempre provar a importância do local e de sua preservação. Daí a importância dos projetos científicos, em especial o Mantas do Brasil.
Hoje, acredito que nossa maior meta seja conferir efetividade às legislações de proteção recém-obtidas no Brasil e no mundo. O Brasil foi proponente, com o Equador, de uma medida de restrição ao comércio internacional de partes e derivados de arraias mantas, na Convention on International Trade of Endengered Species (CITES), que ocorreu em Bangkok, Tailândia, já aprovada e sancionada em 14 de março.
Obviamente não fazia o menor sentido sermos proponentes de medida de restrição ao comércio internacional e continuarmos matando as arraias gigantes em nosso território. Países como Equador e Moçambique já possuíam suas legislações proibindo a matança desses gigantes, mas o Brasil ainda não possuía uma legislação de proteção dessa espécie.
NEO MONDO: Como ficamos, então, no Brasil?
Ana Paula: A conquista da legislação brasileira de proteção veio na esteira da CITES, pela Instrução Normativa Interministerial nº 02 de 13/03/2013, conjunta dos Ministérios da Pesca e Aquicultura e do Meio Ambiente, que proíbe a pesca e a captura de indivíduos da espécie no Brasil.
Temos plena consciência da importância da obtenção dessas legislações de proteção, mas também temos claro em mente que esse foi apenas o primeiro passo de muitos que precisam ser dados se quisermos garantir a sobrevivência dessa espécie de gigante marinho em nosso planeta.
NEO MONDO: A ONG atua em parcerias e, nestas, quais as principais seja da esfera pública seja privada; o que compete a cada uma fazer; e como se dá na prática a importância de cada uma delas?
Ana Paula: Sim, tivemos o patrocínio da Petrobrás para o livro fotográfico Laje de Santos, Laje dos Sonhos, que foi o primeiro veículo, a primeira ferramenta que pudemos criar para levar a Laje até as pessoas. Pudemos contar com patrocínios
da Panco e da Eucatex, bem como apoio da Petrobrás, entre outras empresas, por meio de leis de incentivo à cultura, para a criação de um documentário sobre o local, que conta a história dos primórdios do mergulho no Brasil como pano de fundo, chamado Laje dos Sonhos; ficou belíssimo, uma verdadeira obra-prima da diretora Raquel Pellegrini com imagens subaquáticas do cinegrafista Clécio Mayrink, que é membro do Instituto.
A pessoa diretamente responsável pela concretização desse sonho foi a produtora- executiva e diretora financeira do Instituto Laje Viva, Paula Romano. Esse documentário é imperdível para os amantes do mergulho e tornou-se a segunda grande ferramenta de divulgação da importância da Laje de Santos.
NEO MONDO: Você se considera otimista, realista ou pessimista com o que se conseguiu até agora?
Ana Paula: Acho que sou realista. Se por um lado, fico muito feliz com os resultados já alcançados, por outro, não perco de vista o tanto que ainda há por fazer, por brigar, e essa briga é no sentido de fazer as pessoas acordarem pra realidade e para os problemas ambientais que enfrentaremos num futuro muito próximo. Parece que quanto mais fazemos, mais existe por fazer.
Por exemplo, sem deixar de celebrar a vitória de termos obtido uma legislação de proteção das mantas gigantes no Brasil, sabemos o quanto ainda há por fazer, agora que temos a ferramenta na mão. É preciso conferir efetividade à legislação de proteção. Os pescadores precisam saber que a captura da espécie está proibida. Precisam saber que mesmo a pesca acidental (by catch) está proibida, ou seja, ainda que o animal estiver morto na rede, deve ser devolvido morto ao mar. Não pode ser trazido a bordo. E se os pescadores entenderem o porquê da proibição, se entenderem o quanto e o porquê essa espécie é tão vulnerável, há chances de a preservação ser mais efetiva.
O envolvimento das comunidades de pesca que estão localizadas onde há visitas sazonais da espécie de manta gigante é um dos próximos passos do projeto Mantas do Brasil.
NEO MONDO: Qual o feito mais relevante obtido até aqui? Seria a descoberta de nova espécie em 2008?
Ana Paula: Entendo que dois fatos muito importantes estão interligados. O primeiro deles - e que realmente chamou a atenção do mundo para essa espécie - foi a descoberta de uma nova espécie em 2008, seguido da publicação do paper científico pela nossa parceira, brilhante cientista, Dra. Andrea Marshall, em 2009. Até então tudo era chamado de Manta birostris. Uma descoberta como essa é algo extraordinário, é como descobrir que um elefante havia passado despercebido no deserto até agora.
É uma prova do quanto somos arrogantes em achar que já sabemos quase tudo, e nem mesmo em relação às espécies gigantes nós temos pleno conhecimento. Aliás, as descobertas não pararam por aí, pois a Dra. Andrea está perto de provar a existência de uma terceira espécie de manta gigante, no México. Nós, aqui no Brasil, temos suspeitas de avistagem de um animal dessa terceira espécie em Recife, capturada e esquartejada pelos pescadores, infelizmente.
NEO MONDO: O mergulho é o principal meio de se chegar a tais resultados ou, na prática, se tem revelado o único? Quais são as outras atividades-meio?
Ana Paula: O turismo de modo geral é o combustível desses resultados e, no nosso caso, em particular, o Turismo de Mergulho, que é um mercado crescente. O turismo possui uma força avassaladora. É em nome dos gigantescos recursos gerados por essa modalidade que os mais diversos países preservam seus sítios de interesse, como ruínas e edificações antigas. Agora os governos começam a perceber que a biodiversidade é outro atrator poderoso de público e de recursos.
Moçambique, por exemplo, ficou privado de explorar o turismo riquíssimo gerado pelas visitas aos grandes animais. Enquanto a África do Sul, por sua vez, explora o safári ecológico no Kruger Park, Moçambique perdeu fortuna ao exterminar sua fauna durante sua guerra civil. Por outro lado, ainda possuem vasta fauna carismática marinha, que esperamos seja protegida e perenizada como recurso de turismo daquele país.
NEO MONDO: Na área sob responsabilidade da ONG (seria restrita ao Parque Estadual?) o mergulho é livre ou reservado a especialistas de segmentos com foco na pesquisa científica? Há espaço para ‘aventureiros’, pessoas que curtem mergulhar pelo prazer da prática esportiva ou por ecoturismo?
Ana Paula: O Instituto Laje Viva começou focado no PEMLS, mas os trabalhos cresceram e desbordam os limites geográficos inicialmente traçados. Queremos ampliar os estudos das arraias mantas para localidades no Sul do país. Queremos ampliar os estudos científicos para locais próximos, principalmente os que possamos utilizar para estabelecer comparações com a própria Laje de Santos, como o Arquipélago de Alcatrazes (onde a visitação ainda é proibida) e a Ilha da Queimada Grande, em Itanhaém, onde a pesca é liberada mas a vida marinha praticamente esgotou-se.
O PEMLS é aberto a visitação. Existe uma taxa simbólica a ser paga por visitante, e qualquer embarcação particular apta a navegar até lá (observando as normas da Marinha do Brasil) pode chegar, apoitar o barco ou fundear da maneira correta sem causar danos ao meio. Ou seja, visitantes podem passar um dia lindo nadando, mergulhando, tomando sol no paraíso.
NEO MONDO: Fale um pouco das APAs, a importância e abrangência das principais delas e se as existentes dão conta do recado.
Ana Paula: São Paulo é o estado pioneiro ao dividir o litoral paulista como um mosaico, estabelecendo regras de conduta que variam de local para local de acordo com a necessidade de preservação de cada um deles. E dessa maneira foram criadas três Áreas de Proteção Ambiental (APAs) Marinhas: Litoral Norte, Centro e Sul. O PEMLS está localizado na APA Marinha Litoral Centro. Esta, por sua vez, está subdividida em três setores, entre eles o Itaguaçu, que é especificamente onde se localiza a Laje de Santos. O trabalho de educação ambiental e de fiscalização do uso correto desse mosaico é para ser desenvolvido ao longo de muito tempo pela Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Gestão do PEMLS.
Um dos aspectos positivos é a criação de conselhos, que são ferramentas incríveis de participação da sociedade na gestão dessas APAs. É uma oportunidade de todos os segmentos e interesses opostos se reunirem, exporem seus anseios e necessidades e, assim, ajustarem condutas focando a sustentabilidade. O Instituto Laje Viva ocupa uma cadeira no Conselho Consultivo do PEMLS e outra no Conselho Gestor da APA Marinha Litoral Centro, onde apresenta propostas e busca caminhos pela sustentabilidade junto aos demais setores de interesse nessas mesmas localidades.
NEO MONDO: No contexto do que se faz no Brasil em preservação ambiental, vocês se consideram satisfeitos com as conquistas da área marinha, ou há muito o que fazer ainda e sempre?
Ana Paula: Não há como ficar satisfeita. Ainda engatinhamos. Já era hora de as pessoas pararem de ficar zangadas quando regras são estabelecidas acerca do uso da coisa pública. Já era hora de pararmos de ver as ações de proteção ambiental como restrições ao direito de cada um e vermos como a ampliação do direito de todos e de cada um lá na frente. O direito de cada pescador tem que ser regrado hoje para que esse mesmo pescador tenha peixe em sua mesa amanhã. Não é uma questão de restringir direitos, mas sim de perpetuar direitos, e não só para uns, mas para todos.
Se preservarmos determinadas áreas que são berçários de vida marinha restringindo direitos naquelas áreas específicas, vamos gerar estoques pesqueiros que se desenvolverão em outras localidades e que continuarão a suprir nossos pratos. É hora de percebermos que o ajuste de condutas é necessário para garantir direitos, e não tirá-los, dos pescadores. Mas as resistências ainda são fortes, porque o nível de consciência das pessoas ainda fica muito aquém do que era de se esperar.
NEO MONDO: O notável cientista Aziz Ab´Sáber (que foi Perfil de NEO MONDO, talvez numa das últimas entrevistas que concedeu à mídia impressa) tinha entre suas preocupações o avanço dos oceanos, para ele uma ameaça até mais real do que o aquecimento global para o futuro da civilização. Temas dessa envergadura estão na pauta de vocês, e em que medida é possível detectá-los nos trabalhos de campo realizados pela ONG?
Ana Paula: As pessoas começam a se dar conta agora, muito tardiamente e de modo muito lento, na minha opinião, de que não é o ambiente que está sob ameaça. Não é nosso planeta que está sob ameaça. Tudo o que fizermos pelo ambiente não salva o planeta, salva a nossa existência. Nós é que estamos ameaçados, o nosso modo de vida está ameaçado pela maneira irresponsável como tratamos o ambiente. O aquecimento global e o avanço dos oceanos são sintomas de uma doença. É a doença que precisa ser combatida, e não os sintomas. E os sintomas dessa terrível doença não são apenas esses. Temos que lidar também com o esvaziamento dos nossos oceanos, sentido no mundo todo. Não existe tarefa mais ou menos urgente. Tudo é urgente demais porque já perdemos o bonde.
A pequena parte da população que já se deu conta disso corre atrás do bonde que já passou, e a maioria ainda desconhece a questão por completo. A produção de alimentos é exemplo gritante. Estamos acabando com a vida nos oceanos, de onde tiramos nosso alimento. Ao esgotarmos os recursos marinhos numa pesca irresponsável – e caminhamos para isso a passos largos -, perceberemos na marra que as porções de terra não são suficientes para o plantio da nossa comida.
E nesse momento a humanidade vai à fome, com chances reais de guerras por água doce e alimento. Nossas ações de Políticas Públicas infelizmente estão na contramão da sustentabilidade. Enquanto países como o Equador proíbem a pesca de arrasto e a absurda prática do finning, nossas ações de política pública visam aumentar a frota pesqueira quando já estamos raspando o fundo. É preciso estudar mais, conhecer mais, acreditar mais na pesquisa, respeitar mais os resultados das pesquisas, no Brasil e no mundo todo.
NEO MONDO: Como avalia a participação do Laje Viva no Padi Dive Festival?
Ana Paula: Nessa que é a maior feira de mergulho da América Latina, a acolhida e o incentivo que recebemos da organização do evento foram importantíssimos para que pudéssemos mostrar os resultados dos trabalhos que efetuamos no PEMLS. Trata-se de importante canal de comunicação do Instituto com o público do mergulho, e dessa maneira pudemos levar às pessoas conhecimentos acerca das arraias gigantes, animais de imenso carisma e apelo e que são verdadeiramente adorados por todos os mergulhadores.
Nesta edição esse reconhecimento teve um toque especial. O pessoal da loja montada ao lado do nosso estande na feira veio nos dizer: “ano que vem vamos pedir para nos colocarem próximos a vocês de novo, vocês são um verdadeiro chamariz...”. Foi uma participação muito divertida e positiva. O evento ficaria muito comercial sem a presença e o apelo das ONGs de preservação ambiental que estavam lá presentes, como o Meros do Brasil, o Sea Shepherd, entre outras iniciativas. A presença das ONGs enriquece o evento, acrescentando essa pegada ambiental que é, cada vez mais, preocupação do mergulhador. Um dos aspectos mais incríveis que observamos quando participamos desse tipo de evento é o interesse das crianças pela preservação. Apesar de poucos pais levarem seus filhos até lá, o que é uma pena, as crianças ficam alucinadas pelos aspectos relacionados à Biologia dos animais, se interessam pelos projetos voltados à preservação e querem ouvir detalhes sobre o comportamento deles.
Em especial as crianças gostam de ouvir sobre a capacidade de interação das espécies estudadas com as pessoas, dão muito valor a esse contato não destrutivo. Talvez seja o início de relações mais respeitosas do ser humano com as outras espécies que habitam o planeta, que não, NÃO estão aqui para servir aos nossos propósitos. Enquanto tivermos esse pensamentozinho egocêntrico, estaremos fadados a causar a extinção de inúmeras espécies e, assim, cavar nossa própria.
NEO MONDO: O que foi feito por vocês durante o evento?
Ana Paula: Nosso estande recebeu excelente visitação durante os três dias de feira, boa oportunidade para nossa equipe explicar os projetos e os trabalhos de pesquisa, até mesmo com a entrega de fôlderes, além da exposição de imagens em LCD durante todo o tempo de abertura do evento. As imagens dos pesquisadores em trabalhos de campo, bem como as do documentário e de reportagens feitas com nossa equipe durante os trabalhos, impactaram positivamente os visitantes.
Fizemos também uma palestra sobre nosso projeto Mantas do Brasil, levando os conhecimentos acerca da espécie de manta gigante ou migratória que nos visita sazonalmente (no inverno) ao público interessado.
Significado todo especial para nós foi a presença de nosso importantíssimo parceiro, Michel Guerrero, presidente do Projeto Mantas Equador, com a palestra sobre os trabalhos desenvolvidos na Isla de La Plata, Parque Nacional Machalilla, Equador, que mostram avanços nesse país.
Outra presença marcante foi a de Guilherme Kodja, com a aula do Instituto Laje Viva sobre as mantas gigantes, cujos conhecimentos sempre despertam grande interesse entre os mergulhadores.
NEO MONDO: O Laje Viva tem alguma participação nos trabalhos realizados no Equador com as arraias gigantes?
Ana Paula: Sim. Membros do Instituto têm participado das expedições científicas anuais ao Equador desde 2011 para estudo da Manta birostris. Em agosto vamos embarcar para nossa terceira participação consecutiva nos trabalhos junto ao Projecto Mantas Ecuador, capitaneado pelo biólogo marinho Michel Guerrero e pela Dra. Andrea Marshall. Esse tem sido nosso celeiro de observações e estudos sobre metodologias científicas a serem empregadas aqui. Antigamente, por exemplo, buscávamos obter uma estimativa do tamanho das arraias gigantes que visitam a Laje de Santos a cada inverno a partir de uma estimativa, uma comparação com o tamanho do corpo ou uma braçada de um mergulhador em relação ao comprimento de asa a asa de uma manta. A partir das observações dos trabalhos desenvolvidos no Equador, nosso diretor Ricardo Coelho desenvolve nossos próprios dispositivos de medição a laser. Esse estudo métrico procurará estabelecer uma relação entre o tamanho e a maturidade sexual de cada animal observado no bojo do projeto.
Outra metodologia importante que será implantada em breve aqui em nossos estudos e que também foi testada inicialmente no Equador é o estudo de DNA a partir da coleta de muco da pele das arraias gigantes. O procedimento não invasivo tem-se mostrado eficaz nos estudos da Dra. Marshall no Equador, e pretendemos utilizar a mesma metodologia no Brasil. Para isso contamos com o biólogo responsável pelo projeto, Osmar José Luiz Jr, e o biólogo marinho Eric Joelico Comin cuida das observações de campo.
Momentos especiais e desafios
Ana Paula descreve momentos marcantes de sua vida no Laje Viva. Como esse, muito especial, “no ano de 2006. Pra mim, o resgate da raia manta que chegou ao PEMLS enroscada em uma rede de pesca foi um momento para nunca esquecer, foi um marco pra mim. Estávamos no intervalo entre dois mergulhos quando outra embarcação chamou pelo rádio e informou que um mergulhador havia visto uma manta enroscada numa rede de pesca. Sabíamos que a chance de encontrarmos o animal em uma área tão grande era minúscula, mas tínhamos que tentar. Depois de muito tempo vagando debaixo d´água a esmo, por mais incrível que isso possa parecer, eu e meu dupla na ocasião, Edu Guariglia, fomos conduzidos, guiados, por duas raias chitas, para maior profundidade em local muito mais afastado do que o local onde estávamos.
“E demos de cara com a manta enroscada, muito ferida, sangrando nos locais onde os cabos da rede já estavam cortando a carne do animal. Essa manta fêmea, muito dócil e visivelmente exausta, parou para que a socorrêssemos. Eu sentia ela tremendo de dor enquanto removia os cabos enterrados em sua carne. O jorro de sangue em profusão era assustador, e por um momento eu achei que não conseguiria, que aquilo era demais pra eu suportar. Mas eu jamais me perdoaria se tivesse falhado, então engoli o choro e trabalhei. Desenroscamos muita rede, cortamos muitos cabos grossos. Mas a manta, exausta e após perder muito sangue, não nadava mais.
“Começamos a empurrá-la para que voltasse a nadar. Ela reagia por um instante, mas afundava de novo. Não desistimos dela, continuamos empurrando até que ela nadou rumo ao costão rochoso, onde o cinegrafista estreante Jean Marcel fez algumas imagens incríveis, para que nunca mais nos esquecêssemos. Aos poucos a manta recobrou as forças e saiu nadando rumo ao azul. Depois voltou, como que cumprimento a todos e dando um ‘adeus’ antes de desaparecer novamente no azul. Pagamos muito tempo de descompressão após termos estourado nosso tempo de fundo, e nem sequer tínhamos ar o suficiente pra pagar toda a descompressão. Pra mim ficou o alívio de ter correspondido quando fui exigida. Ainda choro quando penso nesse animal e torço para que ela tenha tido vários filhotes por aí”.
Noites e madrugadas no livro
Outro momento marcante, esse crucial, qual teria sido?
“Sem dúvida foi a confecção e o lançamento do livro fotográfico Laje de Santos, Laje dos Sonhos. Foi um momento muito difícil. Advogados estão acostumados a lidar com prazos fatais, mas produzir uma peça processual e um livro tem uma diferença muito, muito grande, em especial pela quantidade de autores e fotógrafos envolvidos no livro, pois cada capítulo foi escrito por um especialista em sua área, cada um com seu próprio timing , todos personalidades muito marcantes. Além dos autores, participaram dezenas de fotógrafos, cada um com seu jeito de fazer as coisas. E meu trabalho não parou, então eu tinha atividades profissionais durante o dia e ocupava noites, madrugadas e finais de semana com o livro.
“Foi um processo vivido muito intensamente por mim e pelo biólogo do Instituto, Osmar José Luiz Jr. Quando o livro finalmente foi para impressão, tive o ombro do professor Ivan Sazima pra chorar o que ele chama de Síndrome do Livro Findo. A gente simplesmente fica no vazio. Sai de um processo de aceleração total pra um vazio que não tem tamanho. Eu não sabia o que fazer com minhas noites e com minhas madrugadas, fiquei várias noites olhando pras paredes, literalmente. Claro que valeu a pena, mas foi tão sofrido que, quando chegou a vez do documentário, se não fosse a Paula Romano ter assumido pra ela essa responsabilidade, eu não teria tido coragem de assumir como fiz com o livro. São projetos meio kamikazes, a gente pare o ‘filho’ e morre em seguida”.
Olhos atentos e treinados
E daqui pra frente, como fica?
“O Projeto Mantas do Brasil está crescendo. Afinal, as mantas gigantes são do Brasil e não apenas da Laje de Santos. Nesta nova fase que estamos renovando junto à Petrobrás o projeto prevê observações e envolvimento de comunidades desde o sul do país até o litoral sul do Rio de Janeiro, locais onde elas têm sido observadas sazonalmente. E além de o Projeto crescer em termos de extensão territorial, vai crescer em termos de conteúdo. No bojo do Projeto Mantas do Brasil está previsto o lançamento do Programa Cidadão Cientista, que capacitará os mergulhadores a participarem do Projeto através de um audiovisual.
“É uma tendência no mundo inteiro os mergulhadores desejarem participar mais das atividades de pesquisa, e estamos implantando essa iniciativa aqui no Brasil. É um convite ao mergulhador para que deixe a postura passiva e passe a trabalhar efetivamente em prol da preservação e da ciência. No Padi Festival 2012 tivemos a ilustre visita do Sr. Jean-Michel Cousteau, que disse uma frase que ficou comigo. ‘Nós mergulhadores, somos poucos e somos os ÚNICOS OLHOS abaixo da linha d´água.’ Ele colocou em palavras um chamado que eu já trazia comigo. Acredito que no próprio ano de 2013 tenhamos condições de lançar esse Programa, instigando os mergulhadores a fazer esse papel e assumir a responsabilidade de sermos os ‘únicos olhos abaixo da linha d’água’. Que sejam olhos atentos, interessados e treinados”.